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sábado, 29 de setembro de 2012

Relatos Timorenses V


“Eu só pude ir para os estudos depois de 2002, quando chegou a Independência. Então, àquela altura, fiz meus estudos secundários e estudei minha Licenciatura no Liceu de Díli. Trabalho na escola primária e secundária ensinando os direitos humanos, a língua tétum e a moral e a cidadania. E hoje, professor, depois de tanto sacrifício, consegui ser um professor da Universidade! É com muita alegria que consegui chegar nessa posição importante. Ainda não tive condições para fazer o curso de Mestrado, mas vou fazer um dia. É uma vontade minha, como um sonho, poder estudar mais para ajudar os jovens de Timor-Leste. Mas, professor, ainda não sei usar o computador. Será que o senhor poderia me ensinar? Eu posso ir à sua casa, aos sábados, e o senhor me dá umas aulas para eu poder progredir usando o computador. Pode, professor?”

(Assim comecei a dar aulas de “informática” a um professor timorense nas tardes de sábado. Na primeira aula, ele trouxe-me um presente: um “tais”, que é um tecido típico cheio de histórias e encantos. Desde o pedido, passando pelo presente ganho, até a escrita desse relato, tenho os olhos rasos d´água. A simplicidade da vida diante da mediocridade humana tem me trazido grandes lições. Gratidão sempre!)

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Relatos IV


“Professor, eu não concordo com religiões que gastam milhões na construção de seus templos, enquanto muitos de seus fiéis passam grandes necessidades. Uma das coisas que devemos aprender é a simplicidade, pois não há quem seja mais que ninguém, professor. Eu até quis seguir a vida religiosa, mas não posso me comprometer com algo que não concordo. Por isso sigo a minha crença, a minha fé e pratico aquilo que aprendi nas filosofias. Tento ajudar os pobres e necessitados, ensinando-os a plantar, a conviver, a valorizar sua terra e sua gente e a viver em irmandade, compartilhando o que têm e praticando a alegria. Aqui em Timor-Leste muito se lutou pela Independência... muitos morreram por uma ideologia de vida e agora o que vejo é políticos querendo prender novamente o seu povo em um sistema que não é justo para todos. Nossa liberdade é abraçarmos nossa terra e nossa gente. É cuidarmos de nossos doentes, de nossas crianças, de nossos homens e mulheres. Darmos à terra aquilo que quisermos dela e vivermos em alegria com aquilo que temos. Somos todos irmãos e precisamos mostrar essa nossa força, que é maior que qualquer dinheiro. Isso que faz uma nação!”

(Trecho de uma aula de vida, que veio do fundo das emoções de uma lutadora pela paz.)

domingo, 23 de setembro de 2012

Relatos timorenses III


“... nós não queremos a ONU em nosso país porque na verdade eles nada fazem ou podem fazer por nós. No momento da Independência havia uma necessidade internacional para a ONU estar aqui. Quando mais sofríamos, tendo muitos timorenses morrido, o que tivemos foi o seguinte: Portugal nos abandonou para tratar de seus problemas pátrios, a Indonésia nos invadiu de forma dramática com armas compradas dos Estados Unidos... a Austrália não achava interessante um país com ideias socialistas, ninguém nos quis defender, nem o Brasil. A ONU existiu para melhorar a consciência mundial e porque Timor-Leste tem petróleo e outras riquezas.
Hoje não precisamos mais da ONU. Ela não resolve nada aqui em nosso país. Precisamos de cooperação tecnológica e de muito respeito das nações para conseguirmos crescer da nossa forma. Com os nossos interesses e a nossa cultura. Não precisamos de nações nos explorando mais. Nossa riqueza maior é o nosso povo e para eles é Timor-Leste. Eu seria muito infeliz, professor, se visse meu país nas mãos de outra nação novamente.”

(Assim se manifestou o senhor que cuida do jardim da Faculdade onde trabalho, em bom português e alto grau de emoção)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Relatos timorenses II


“- Professor, Timor-Leste vive hoje como um jovem. O que querem os jovens? Aproveitar sua liberdade. Mas isso sempre é perigoso, não é professor? Eu sou mãe de dois rapazes e vivo dizendo a eles que estudem, que consigam trabalhar e que formem uma família respeitosa. Porque o pai deles, seus tios e muitos amigos nossos tiveram que passar pela dificuldade dos massacres de Timor. Meu marido morreu no massacre de Santa-Cruz. E não puderam ver o país livre da Indonésia. Mas meus filhos podem e vão criar os seus filhos com liberdade. Professor, Timor-Leste não precisa ser rico com o dinheiro, precisa ser rico com o respeito aos direitos humanos. Eu vi meu pai ser torturado e morto. Eu e meus irmãos. Foi Deus, nosso senhor, que não permitiu que eu fosse morta. Passei muita fome no campo de prisioneiros. Algumas amigas minhas foram abusadas pelos soldados indonésios. Eu sempre fui feia e isso me salvou. Os timorenses que tinham dinheiro naquela altura já haviam saído de Timor-Leste. Então, professor, não é a riqueza que nos salva, não é a beleza, é a dignidade.
- Mas a senhora disse que seu pai foi morto, seus irmãos, amigos, até seu marido. Por que eles não foram salvos?
- Professor, a dignidade é uma arma muito forte que assusta as pessoas. Os soldados indonésios tinham medo da dignidade timorense. De sua crença religiosa, de sua vontade política. Toda a gente queria Timor-Leste um país com igualdade para todos. Isso assusta. E os soldados tinham as pistolas e outras armas na mão. Para se defenderem da dignidade, matavam as pessoas. Muitas pessoas morreram defendendo a dignidade das pessoas que ficaram vivas.
- E hoje? A senhora acredita que foi válido todo esse sacrifício?
- Não precisava ser assim, professor. Mas a vontade do dinheiro faz as pessoas ficarem malucas e matarem até mesmo as pessoas para terem mais dinheiro. Então, por isso mesmo, é importante que as pessoas lutem por suas vidas, pela vida de suas famílias e amigos. Ou então vamos ser escravos dos mais fortes, não é mesmo, professor?”
(Conversa com uma aluna de 36 anos com aparência de 50 e que hoje trabalha no ministério da Educação em Timor-Leste)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Relatos timorenses I


Eu era informante das Falintil. Vinha para Díli clandestinamente buscar documentos e informações para as tropas que estavam escondidas nas montanhas. Buscava com os padres, com os estrangeiros e com pessoas que nos ajudavam, alimentos, jornais, armamentos, cartas, tudo o que fosse preciso. Numa dessas minhas vindas, eu fui preso. Eu, minha esposa e nossas duas filhas. Fomos conduzidos a um campo de prisioneiros. Não sabiam que eu era informante das Falintil, por isso nada de pior me aconteceu. Nós tínhamos muito pouco alimento e água. Tudo da pior qualidade. Muitos prisioneiros adoeciam e morriam por causa disto. Foi o que aconteceu com minha esposa. Ela foi ficando cada vez mais magra e fraca até que um dia não resistiu e morreu. Três semanas depois, minha filha mais velha também não resistiu à fraqueza, à tuberculose e a falta de alimentos e medicamentos, e morreu. Eu, apesar de doente e fraco, consegui resistir, talvez porque havia minha filhinha de apenas 2 anos e que não teria ninguém para ampará-la. Quando tudo acabou, eu e ela fomos para meu distrito, Baucau, para recomeçar nossas vidas. Não chore não, professor. Cada um de nós tem que ser feliz com a história que tem para contar. Pergunte ao General Suharto e aos soldados indonésios as suas histórias. Essas sim são tristes, coitados!

 Deus permitiu que sobrevivêssemos a tudo aquilo, então devemos ter gratidão por esse presente: a vida. E veja bem, professor, como a vida e Deus são infinitamente sábios e bons, uma das filhas se foi para cuidar da mãe e a outra ficou comigo para me amparar na velhice. A guerra, professor, é triste, mas por causa da maldade humana ela é necessária para lutarmos por nossa dignidade. A vida sempre nos recompensa de alguma forma. Eu aqui vou trabalhando por um Timor-Leste de bandeira vermelha de sangue, mas livre. Minha esposa está no céu ajudando a proteger nossa família e nossa nação. Temos um exército de guerreiros aqui na Terra e um exército de anjos no céu. Não é lindo isso, professor!

(Relato de um professor timorense, ao voltarmos do campus distante da Universidade, em meio ao seu sorriso de felicidade e ao rio de lágrimas que me corriam a cada som pronunciado)